terça-feira, 3 de março de 2009

REPORTAGEM PUBLICADA NO JORNAL EL PAIS
A CULTURA JÁ É DE MASSA
Títulos de qualidade se mesclam entre “Best-sellers” e filmes e séries sucesso de bilheteria são bem avaliadas pela crítica – Diminui a distancia entre a elite e o gosto popular?
Abel Grau 03/03/2009

Certamente, nenhum crítico cultural faria qualquer objeção ao seguinte menu: para ler, Vida e destino, de Vasili Grossman; para ver na televisão, The Wire; no cinema, Wall-E (Andrew Stanton); para ouvir, Kind of Blue, de Miles Davis; e para uma tarde de museu, Velázquez. Poderiam ser essas as preferências de um intelectual elitista, mas já o são também as de um público cada vez maior. E mais seleto. Livros, series de televisão e filmes de qualidade se convertem em blockbusters graças a esses cidadãos que cada vez lêem mais e freqüentam bibliotecas e museus. Somos cada vez mais cultos?

Os títulos acima não foram eleitos ao azar. São obras que receberam elogios unânimes da crítica e que se converteram em êxitos de público. A novela Vida e destino, sobre as entranhas do totalitarismo soviético, vendeu mais de 160.000 exemplares desde setembro de 2007. Os DVD’s da primeira temporada de The Wire, série convertida em obra de culto, esgotaram-se no Natal.

Editores e psicólogos sociais coincidem em que o nível cultural médio aumentou e, mesmo frente a críticos céticos, existem indícios de uma tendência minoritária, porém crescente: a elevação do gosto cultural popular. “O leitor é mais seleto; nas listas encontramos o Best seller de sempre, mas também a intromissão de clássicos”, diz Antonio Maria Ávila, diretor executivo da Federação de Gremios de Editores de España (FGEE).

O medidor fundamental do nível cultural é a leitura, “a chave do conhecimento na sociedade da informação”, segundo escreve no especialista em cultura digital José Antonio Millán em La lectura y La sociedad del conocimiento. “A colossal acumulação de dados que constitui a sociedade digital não será nada sem pessoas que os juntem, integrem e assimilem. E isso não será possível sem habilidades avançadas de leitura”.

Felizmente, os índices constatam que na Espanha se Le cada vez mais: a porcentagem dos que lêem freqüentemente (quase todos os dias ou de uma a duas vezes por semana) passou dos 36% em 2000 para 41% em 2007. Consulta-se mais Internet e lêem-se mais jornais. “Estamos vendo um crescimento importante no número de leitores de diários eletrônicos nos últimos anos”, resume Millán em Los modos de la lectura digital. “De fato, em apenas seis anos o número de leitores de imprensa virtual aumentou em mais de três milhões”. Cuidado: “O nível de leitura freqüente ainda é baixo em comparação com a média européia, e sobre tudo com os países nórdicos, algo em torno dos 70%”, admite Ávila. “Mas deve-se levar em conta que os países do centro e norte europeu alcançaram a alfabetização total na população de até 16 anos em 1955, e a Espanha há quatro anos”.

Um retrato do leitor médio é o de uma mulher por volta de 30 anos, com estudo superior e vivendo em uma zona urbana. O grau de leitura é bom entre os mais jovens, mas vai caindo à medida que vão crescendo.

Os dados das bibliotecas públicas também convidam ao otimismo. Segundo o informe Las bibliotecas públicas em España. Dinámicas 2001-2005, do Ministério de Cultura, a freqüência aumentou um 53%, passando de 1,49 visitas por habitante a 1,98; de 31,7 milhões de empréstimos a 49,4 milhões. Dados consideráveis, porém longe da média européia (4,9 visitas). E poderiam ser mais, aposta Ávila, se contássemos com uma rede bibliotecária maior. “Carecemos de bibliotecas como as do cinema negro dos anos quarenta, aonde os investigadores iam no meio da noite e encontravam tudo o que buscavam”.

Um aumento parecido, porém menos pronunciado, se deu nas visitas a museus, a shows (de música clássica e atual), ao teatro e à dança, que ganharam em espectadores e em arrecadação, segundo a última pesquisa de Hábitos y prácticas culturales do Ministério. O Museu do Prado, maior pinacoteca da Espanha, passou dos 2.318.525 visitantes em 2003 aos 2.759.029 em 2008. Também se vê uma boa acolhida à ópera, talvez a última arte que conserva sua aura de distinção. “É um resumo das linguagens artísticas; une a música, o teatro, a dança, as artes plásticas”, opina Joan Francesc Marco, diretor geral do Gran Teatro Del Liceo, de Barcelona. “Desfrutar dela requer um esforço, como ler Ulisses, de Joyce”. O teatro barcelonês mantém uma ocupação que oscila entre o 88,5% da temporada 2003-2004 e o 91% da 2007-2008”.

“Como média, entre hoje e trinta anos atrás, o crescimento cultural é evidente”, opina Francisco Chacón, professor titular de Psicología Social da Universidad Complutense de Madrid. “Antes havia um desnível notável entre uns poucos bem preparados e uma maioria que não alcançava a excelência do conhecimento”, acrescenta. “Essa distancia foi diminuída e o nível cultural foi democratizado”.

É só dar uma olhada nas listas de livros mais vendidos. Já não se trata apenas dos previsíveis Best Sellers da cada temporada. As duas primeiras posições são ocupadas há duas semanas pelos dois primeiros capítulos da trilogia Millenium, do falecido repórter sueco Stieg Larsson, que foi recebida com aplausos quase unânimes da crítica. Foram despachados mais de 830.000 exemplares desde a primavera passada. E tem mais. Entre eles, Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano, que se adentra na organização criminosa da Camorra, vendendo perto de 300.000 cópias. O mesmo aconteceu recentemente com O mundo clássico, um volumoso ensaio sobre a antiguidade grecolatina do erudito britânico Robin Lane Fox que acumula 40.000 vendas desde 2007, ou com Ensaios de Michel de Montaige, obra prima da literatura universal, um autentico blockbuster.

As séries de televisão também são compradas com tino. Entre as dez mais vendidas na Fnac em 2008 se encontram Lost, Rome, The Office e The Sopranos, uma quadra vencedora de críticas. “A tendência hoje é dada pelo tamanho da televisão que se tem em casa”, observa o crítico de televisão Hernán Casciari. “Os adultos preferimos ficar no sofá e ver coisas boas, e vamos ao cinema só para levar aos filhos comer pipoca”. Seu parecer é claro. “A oferta é melhor na televisão. Alguém requintado, hoje em dia, fica em casa com seu DVD”.

Os críticos, ainda assim, matizam qualquer triunfalismo. “É um fenômeno repetido em quase todas as épocas. Também foram êxitos Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez, e Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, ou, por citar um caso recente, o livro de contos de Alberto Méndez Los girasoles ciegos, talvez o primeiro livro de contos espanhol convertido em Best seller”, lembra Fernando Valls, professor de Literatura espanhola contemporânea da Universidade Autônoma de Barcelona. “Não considero que o que se entende por alta cultura esteja atingindo o público de massa, adoraria vê-lo”. O mesmo pensa Millán: “Em respeito à literatura, acredito que se trata de casos isolados”.

O público é livre, insiste Ávila. “As pessoas escolhem sua leitura por recomendação e a crítica não é relevante. O que acontece é que primeiro o livro se torna um sucesso e depois os críticos falam dele, como aconteceu com Soldados de Salamina, de Javier Cercas, ou com a própria Vida e destino, de Grossman”.

O mesmo acontece no cinema, aonde o grande público tem ocupado o lugar do crítico. “Nos últimos anos a popularidade de um filme converteu-se num excelente indicador, não só do seu valor como entretenimento, mas também de sua qualidade”, escreve Richard Corliss na revista Time. Os blockbusters conseguiram a difícil junção de qualidade e popularidade. “Os filmes indie estancaram-se e tornaram-se flácidos. As superproduções são mais inteligentes, misturando qualidade narrativa aos melhores efeitos visuais. Para ser claro, o cinema de ação uniu-se a arte. Quanto maior, melhor”. E cita o caso de Wall-E, fábula de amor robótico da Pixar, ganhadora de inúmeros prêmios, que arrecadou mais de 500 milhões de euros em todo o mundo, e foi o segundo DVD mais vendido na Fnac no natal passado; The Dark Knight, de Christopher Nolan, líder mundial de arrecadação (e que, goste ou não, acumulou resenhas entusiasmadas dos principais críticos americanos), e Iron Man, de Jon Favreau, um filme “mais inteligente do necessário”, segundo Time.

Tudo é questão de gosto. Segundo Román Gubern, catedrático de Comunicação Audiovisual da Universidade Autônoma de Barcelona, “Deve-se contar com a extensão da comunicação de massas nos países subdesenvolvidos, que capta cada vez mais adeptos para as obras elitistas: livros, música, etc. Ao fim e ao cabo, foram editadas no mundo mais gravações de Richard Wagner que da Madonna. E muitas vezes nos esquecemos disso”.

O debate sobre a melhoria ou não do nível cultural da sociedade foi a questão central de uma serie de reportagens feitos há uma década pelo diário britânico The Guardian. O resultado foi positivo. “Afastados da decadência, somos mais inteligentes que nossos avôs ou bisavôs. Milhões de mulheres estão muito melhor educadas do que as gerações anteriores podiam sonhar, e suas habilidades mentais estão muito mais desenvolvidas graças à sua incorporação ao mercado de trabalho”, afirmava a jornalista Madeleine Bunting em 2000. “Temos um leque de informação muito maior que nossos progenitores: muito mais gente está familiarizada, mesmo que de maneira básica, com milhares de matérias”.

Mais inteligentes que nossos avôs? Deve-se analisar o conceito de inteligência, afirma o psicólogo social Chacón. “Inteligência é a capacidade de adaptação ao meio, o que requer habilidades que variam a cada momento”. Assim, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) requerem destrezas diferentes. “Os jovens de hoje não são tão incultos em sentido absoluto, mas valorizam menos a memória, por exemplo, e valorizam mais as TIC; mas é porque talvez isso suponha uma melhor adaptação, porque talvez isso seja o que lhes peçam no trabalho”.

O que acontece, finalmente, é que existe uma oferta cultural maior que nunca. E o consumidor é intelectualmente maduro para saber o que eleger, escreveu o crítico Euan Ferguson. “Hoje podemos ler livros mais difíceis e complicados e logo após escolher algo suave para relaxar-nos. Podemos gravar um documental de duas horas sobre a Bósnia e um capítulo de uma comédia medíocre. Nada mais é vergonhoso, podemos ter tudo”.

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