sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A mil beijos de profundidade
Leonard Cohen recebeu no passado mês de Outubro em Oviedo, Espanha, o Premio Príncipe de Astúrias de Letras, uma condecoração que supõe o reconhecimento como poeta do artista canadense
Alberto Manzano – Cultura/s La Vanguardia, 19/10/2011

O poeta, compositor e cantor canadense Leonard Cohen recebeu no dia 21 de Outubro de 2011 o Premio Príncipe de Astúrias de Letras. Uma condecoração que foi amplamente questionada. Não entrarei na polémica – “quando há crítica, é a crítica a julgada”, dizia o próprio Cohen. São mais de trinta anos que levo trabalhando no âmbito da poesia no rock e já me sinto imune ao febril delírio académico mais retrógrado – às vezes a rigidez purista torna-se convulsiva.
Não por isso deixarei de reconhecer o fato inegável de que o rock, a música moderna, ou como queiram chamá-la, sofre uma desmedida saturação de versos de má qualidade; nem, ao contrário, que essa constatação seja motivo para admitir que uma grande parte da melhor produção poética de nossos dias se expresse através da música. Atualmente ninguém precisa publicar um livro de poemas para ser poeta, podendo fazê-lo perfeitamente através da música: “ Eu não escrevo poesia, simplesmente a canto. Não há tempo para lê-la, mas sim para escutá-la”, diria John Lennon.
E é verdade, fruto de um tempo desenfreado e alfinetado pelo ferrão da urgência sistemática – no qual se não quer entrar na corrida, melhor correr à frente dela – a languida poesia encontra uma maneira veloz de sobreviver e recupera sua vitalidade pegando carona na expressão artística que entra com maior força no leito de todos: a música popular. E dessa maneira, cavalgando a música, fundida num só corpo, a poesia populariza sua mensagem: “Eu nunca estabeleci qualquer diferença entre poesia e canção”, diria Leonard Cohen. “Era uma expressão que se impunha com beleza, ritmo, autoridade e verdade. Dá no mesmo que Fats Domino cante “Eu encontrei meu entusiasmo em Blueberry Hill” ou que Yeats diga: “Somente Deus poderia amar-te por ti mesma, e não por seus cabelos dourados”. Eu nunca diferenciei a expressão popular da literária. E mesmo estudando literatura inglesa na Universidade de Montreal, o que na verdade buscava era criar uma linguagem mais próxima a nós, aos nossos ritmos, que falasse de nossas vidas. Nesse sentido, trabalhei desde a perspectiva de que a música é a vida do coração, e o poema sua expressão mais nobre. Me impus o dever de cultivar o coração através da música”.
Porem Leonard Cohen já era um reconhecido poeta nos círculos literários dos Estados Unidos e Canadá quando chegou a Nova Iorque em 1966 para aventurar-se no mundo da música. Levava debaixo do braço dois romances e quatro livros de poesias que haviam sido publicados ao longo dos dez anos anteriores à sua chegada. Evidentemente isso lhe transformava numa rara avis. Um poeta que canta poemas? Um cantor que recita suas canções? Cohen tinha então 33 anos e transitava por um mundo de jovens idealistas de todo tipo: hippies, beatniks e amantes da contracultura. Ele havia sido um burgues universitário, diplomado em literatura anglo-saxónica, ilustrado nas Sagradas Escrituras e no esoterismo, revolucionário frustrado, profeta apocalíptico y drogado incorrigível, e mesmo que na desconjuntada órbita da Factory de Warhol suas credenciais literárias causaram cautela e ressentimento – sua amiga Janis Joplin chegou a recrimina-lo numa ocasião: “Que foi, Leonard, veio ler seus poemas para as velhas?” – sua excepcional originalidade artística fez com que muitos de seus célebres colegas – Bob Dylan, Lou Reed, Jackson Browne – reconhecessem que estavam ante um grande poeta do rock.
Claro que Leonard não foi o primeiro artista em levar a poesia ao rock – em meio dos anos sessenta em Nova Iorque as pessoas chegavam com guitarras, saxofones, pandeiros, vinho, panfletos e amor livre, poesia, circo e zen, haviam pintores, estagiários e vagabundos, santos, druidas e anjos, especialista em uma coisa ou outra, e todo se misturava – porem, sem dúvida, ninguém havia antes subido tanto o nível. Até o próprio Allen Ginsberg lhe elogiava. As músicas de Leonard Cohen conjugam num mesmo corpo artístico o império da palavra universal desprovida de idioma, o mistério da verdade derramada por um rio infinitamente largo e sem direção: o lirismo dos poetas românticos anglo-saxões – Keats, Yeats – os textos sagrados do antigo e do novo testamento – Isaías, Jesus – os cantos à desobediência dos poetas beat, o surrealismo de Lorca – que lhe abriu a mente quando tinha quinze anos – e o sufismo de Rumi – que lhe havia acendido o fogo incombustível da experiencia mística no coração. Um diluvio destilado numa canção.
Para muitos de seus fãs mais fiéis, Leonard Cohen é o poeta sagrado de nossa geração – ou como o qualificava tao correctamente Santiago Auserón: “cantor do fogo sagrado”. Porque, na investigação diária dos mistérios do espírito, ninguém como esse incomparável mestre da linguagem interior vislumbrou o coração com o braço de seu violão, ninguém lançou cargas de luz sobre os abismos da alma com tanta habilidade, ninguém tao competente mergulhou em lugares profundos aonde a maioria de nós não se atreveria pisar – a mil beijos de profundidade – articulando um discurso inteligível na descrição do que havia encontrado lá. Sua obra salvou tantas vidas como foi testemunha de numerosos suicídios, seus livros descansaram nos criados-mudos de milhões de amantes e solitários schopenhauerianos, de monges com ereções sob o hábito e terroristas de pólvora molhada, e sua música, suas embriagadoras toadas, voltam a revoar uma e outra vez em nossas mentes como um mantra.
Sou consciente de que muitos dos que conhecem Leonard Cohen como cantor desconhecem sua obra literária – no melhor dos casos, talvez tenham ouvido o suave eco de  algum sino distante chamado leitura – e não quero que isso seja um chamado a nenhum tipo de exército de salvação poética. Leonard Cohen não gostaria. Ele segue concentrado em seu trabalho – ainda que seus longos parêntesis criativos nos demonstraram com frequência que, para ele, o ofício de ser humano é muito mais importante que o de ser um cantor ou poeta. No início dos anos noventa, abandonou o mundo para retirar-se num Monastério budista. Uma disciplina que leva praticando desde o final dos anos sessenta sob os ensinamentos de seu velho mestre japonês Roshi. Mas nunca desprezou seu trabalho artístico. Sua vida está casada com a arte. E soube compatibilizar sua obra musical e poética sem estabelecer diferencia alguma entre ambas. É autor de um conjunto de poemas que provavelmente seja a obra pós-moderna mais inventiva da poesia norte-americana dos anos setenta: “A morte de um mulherengo”; criador da desconstrução estética num ágil livro libertário aonde o malandro aparece como uma espécie de anjo da vingança miltoniano: “A energia dos escravos”; um talmudista que justapõe zen e judaísmo no livro mais confessional e sálmico de nossa cultura ocidental: “Livro da misericórdia”; e pintor da tela poética que revela a completa dissolução do eu particular aonde a doçura interior do homem não se pode esconder: “Livro da saudade”.
Leonard Cohen, profeta do coração, líder do nosso governo no exílio, velho fanfarrão que foi pra cama com todas.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Como surgiram as ciclovias holandesas?

Doutor, seu coração é corintiano
Daniel Piza
17 de dezembro de 2000
Em campo, Sócrates sempre pareceu um jogador frio, cerebral, um clínico em meio à temperatura febril da arena, um caniço pensante fincado no lodaçal da paixão coletiva. Mas como pôde ser o maior ídolo da torcida mais passional do país do futebol? Como pôde atuar como uma espécie de pára-raio, alto e magro, atraindo a energia corintiana para si? "Nunca fui frio", diz o doutor Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, que todos - inclusive ele mesmo, na mensagem do celular - chamam de Magrão. "Apenas era muito atento ao comportamento da torcida para usá-lo em favor da equipe."

Fora de campo, Sócrates realmente não parece nada frio. É informal, gosta de beber, conversar e cantar, e diz tudo que pensa, ao mesmo tempo desarmado e articulado. Liderou o grupo que inventou a "democracia corintiana", nos anos de 1982-83, em que ele, Casagrande, Vladimir, Zenon e os outros, com apoio de Adilson Monteiro Alves, dispensaram a concentração, assumiram vícios pessoais e posições políticas, bancaram a independência do jogador como trabalhador e artista, dono de sua voz, autônomo diante dos microfones.

Em campo e fora dele, Sócrates era o ponto de referência desse regime que queria ser tão livre quanto profissional.

A democracia corintiana seria possível hoje, quando jogadores são cerceados por mostrar camisas com frases, por se divertir à noite, por se expor na mídia, tudo em nome desse tal profissionalismo? "Sim, mais do que nunca", afirma sem titubear, bebendo sua Cerpa à mesa do restaurante Giardino, em Moema. "Hoje em todas as áreas as empresas precisam que o trabalhador participe, que se sinta bem para trabalhar melhor." A democracia corintiana era essa mentalidade aplicada ao mundo do futebol, tanto é que os resultados - hoje cobrados por patrocinadores milionários - apareceram de forma inequívoca naquele bicampeonato paulista.

"O melhor era o prazer de ir para campo jogar", diz Sócrates, lembrando o entrosamento do grupo com e sem a bola. A concentração, para ele, tira justamente o prazer de jogar. "O sujeito fica dois ou três dias fechado antes do jogo. Então não vê a hora de ele acabar. Quando termina o isolamento, sai como um javali para a farra, e aí pode ser pior ainda."

Abolição atlética - Sócrates é favorável a que se deixe o jogador assumir a responsabilidade. Acha que todos os problemas do futebol brasileiro passam por aí. Como na abolição da escravatura ou na universalização do voto, os dirigentes do País sempre têm alegado os riscos de atribuir autonomia ao trabalhador. Sócrates refuta esse paternalismo. Se o atleta não sabe que, na véspera de um jogo, deve "pegar mais leve", ou se achar que treino não é necessário, que vá embora. É ao indivíduo que cabe ser profissional.

Por isso critica que a Lei Pelé tenha sido retalhada. O passe significaria uma independência maior do jogador, quase como uma carta de alforria. "Mas se passaram três anos e eu não vi nenhum debate de verdade sobre como o sistema deve se preparar para as novas regras." Em março, a lei tem de ser revista e Sócrates teme por seu destino. "Há medo de lado a lado", diz ele.

O melhor caminho seria o clube estabelecer um contrato com o jovem que quer se tornar profissional para investir nele e ter um crédito correspondente, a ser pago pelo jogador.

Sócrates acredita que deva haver uma política esportiva que aponte para esse sentido, com incentivos e regulamentos adequados. O esporte no Brasil tem de olhar para a formação de base, utilizando - como ocorre em qualquer país que seja potência olímpica - as escolas como indutoras. Em Cuba, recentemente, ficou impressionado mais com o esforço de capacitação humana do que com a infra-estrutura atrasada e limitada oferecida pelo poder público. Sócrates acompanhou a caravana de Lula, mas acha que o Brasil pode fazer muito mais com uma organização do sistema que favoreça as empresas que queiram investir no esporte como ação social e lucrativa.

Esse discurso tem sua razão de ser. Formado em medicina e especializado em medicina esportiva, jogador mundialmente celebrado, ex-técnico, ele agora se dedica a completar esse currículo que o qualificaria como ninguém a ser "um gestor de futebol" - isto é, um supervisor que trabalha na interface entre o técnico e os dirigentes, capaz de entender todas as áreas para ligá-las em torno de um objetivo. Aos 46 anos, acaba de fazer um curso de extensão na Fundação Getúlio Vargas de administração esportiva. Também é colunista do jornal Gazeta Esportiva e desenvolve projeto com o fisiologista Turíbio Leite, da Escola Paulista de Medicina, para montar um centro de excelência que auxilie na avaliação e na evolução dos atletas.

Clínico geral - Toda essa bagagem, dentro e fora de campo, Sócrates quer usar para evitar experiências administrativas como a que o Corinthians sofreu neste ano. O time foi desmontado, a torcida montou no time, e todo um projeto de investimento moderno fracassou. Para Sócrates, predominou a incompetência: o ajuste entre a pressa do lucro e a continuidade do trabalho não se deu, por culpa de ambas as partes e despreparo do gestor posto entre elas.

Sócrates conhece como ninguém a pressão de uma torcida. Seu modo característico de comemorar um gol, quase parado, apenas com um braço erguido, nasceu de uma reação a vaias sofridas no jogo anterior, quando tivera de esperar quatro horas no vestiário para poder deixar o estádio.

Sócrates fez três gols na partida seguinte e, ao final, foi aos microfones declarar que achara injustiça aquela pressão ameaçadora. Chegara poucos meses antes ao clube e estava se adaptando. Com aquele gesto, criou novo patamar de relação com a torcida e ganhou credibilidade inigualável na história do Timão.

Afinal, a adaptação era antes de mais nada no estilo. Em Ribeirão Preto, onde jogava depois das aulas na universidade, sem treino quase nenhum, já se destacara com a habilidade do drible e do chute. Mas no Corinthians, por causa de sua extrema magreza e estatura, teve de refinar seu jogo para não ser abalroado por zagueiros-armários. Passou a se tornar um especialista do toque de primeira, que azeitava o ataque do time e surpreendia qualquer adversário. O passe de calcanhar, que adotava como se fosse um passe qualquer, tão funcional como os outros, nasceu dessa adaptação. Com sua visão de jogo, Sócrates encontrava corredores para lançamento ou tabela como um arquiteto do improviso. E, mesmo sem ser um prodígio de preparo físico, corria para receber de volta o passe e concluir para o gol com uma calma inacreditável.

Era, em outras palavras, essa coisa ainda rara - ou agora mais rara - no futebol brasileiro, o ponta de lança que sabe armar e definir, eficiente em todos os fundamentos: chute forte, chute colocado, cabeceio, etc. Não se tratava apenas, como diz ele, modestamente, de ter uma capacidade de medir a pressão de um jogo e ministrar as doses de ânimo e paciência necessárias no time e na torcida, ridicularizando o marcador implacável ou abrindo um clássico com firulas provocantes. Mas também de comunicar com os pés os caminhos por entre a defesa adversária, como mosqueteiro na vanguarda.

Vitória moral - Sócrates, apesar de toda essa identificação com a torcida corintiana, conseguiu escapar a outro mal do futebol, que não deixou de atingir até seu irmão Raí: foi bom na seleção tanto quanto no clube. Era uma das estrelas da melhor seleção que o Brasil teve depois de 1970. Com Oscar, Júnior, Éder e um meio-de-campo composto por Falcão, Cerezo, Zico e ele, protagonizou também a derrota mais dramática da seleção canarinho depois do Maracanaço de 50. Mas, apesar de Romário e outros dizerem que essa foi uma geração "fracassada", Sócrates se lembra do time de 82 pelo mesmo fator por que se lembra do Corinthians daquele ano: a alegria de entrar em campo e se entender musicalmente com seus companheiros de bola.

No fatídico jogo com a Itália, a famosa "tragédia de Sarriá", houve erros incríveis. Cerezo deu um passe errado na saída de bola, e Paolo Rossi não perdoou. Depois, Júnior deu condições para o mesmo Paolo Rossi tocar para dentro. Mas Sócrates acha que esses erros não têm explicação além da natureza do futebol. "O futebol é um jogo de erros", diz. Reviu a partida apenas uma vez, no início dos anos 90, e concluiu que a Itália era inferior, mas jogou muito bem.

Concede e confessa que Serginho era um estranho no esquema, porque o time se preparara para atuar com Reinaldo (que diz ter sido o maior centroavante da história brasileira) e depois Careca na posição. Até hoje Sócrates é cobrado por uma cabeçada defendida em cima da linha por Zoff nos minutos finais, mas quem a deu foi Oscar.

Sócrates se lembra da final da Copa de 94, diante da mesma Itália, em que Romário perdeu um gol na pequena área no final do jogo e, depois, bateu um pênalti em que, antes de entrar, a bola desviou na trave. Do herói ao vilão, um segundo pode ser suficiente. O próprio Sócrates, como Zico, viveu esse drama em 86, quando perderam pênaltis. Sócrates, como fazia, esperou o goleiro francês se mexer, mas ele ficou parado e atrapalhou Magrão. Não há por que se penitenciar. E, neste caso, Sócrates diz que o time não tinha a mesma força, porque "armado de última hora".

Burocracia moderna - O período na Itália contou como experiência. O estilo de jogar precisou ser novamente adaptado; ou melhor, Sócrates voltou a atuar como no Botafogo de Ribeirão Preto, prendendo mais a bola, aplicando mais dribles. Mas aos 30 anos a saúde já não era a mesma, e seu futebol aparecia mais quando houvesse mais de um atacante à sua frente.

Ficou na Fiorentina um ano e, saudoso do Brasil, voltou. Outros clubes, como Flamengo e Santos, também trazem momentos à memória, mas nada igual ao Corinthians. "Não existe torcida tão intensa como a corintiana. A do Flamengo é maior, mas mais espalhada. A Fiel é incomparável."

O líder da democracia corintiana acha que técnicos têm de saber escalar um time e, mais importante, adaptá-lo às circunstâncias do jogo. Sobre Leão, que era o goleiro do Timão no bicampeonato e o principal oponente da idéia de democracia corintiana, diz não saber se vai conseguir montar um "futebol bailarino" na atual seleção. Mas vê muita burocracia nos jogadores atuais.

Sócrates imagina para a seleção de 2002 um ataque composto por Ronaldinho, Djalminha e dois dos seguintes três: Romário, Rivaldo ou Ronaldo. Diz que faltam a Rivaldo o olhar periférico e o diálogo com a torcida, mas o vê como atacante, não como armador. Romário precisa estar em forma, mas, "jogando como está jogando" - guardando o esforço para os botes letais -, continuará quanto tempo quiser. E Ronaldo tem de estar recuperado. (Sobre a final da Copa de 98, acha que a convulsão pode ter sido um efeito colateral de algum antiinflamatório como o Voltaren.) Sócrates sabe do que fala. Viveu isso como jogador no Corinthians e na seleção. Tentou aplicá-lo como técnico. No último cargo, à frente do Cabofriense, terminou demitido pela prefeitura da cidade carioca por "excesso de competência". Dava treinamento aos jogadores que envolvia discussão de temas e indicação de leituras. No campo, mandava um grupo ficar brincando com bola no ataque e dizia ao meio-campista para lançar a eles de supetão. Com os resultados, os políticos vieram querer capitalizar o sucesso que era de Sócrates, que ia de nutricionista a técnico do time.

Mesmo assim, vê um amadurecimento do negócio futebol no Brasil e, nele, um lugar de destaque para si. Feliz em seu casamento, morando no bairro do Brooklin em São Paulo, está animado com os diversos projetos. Na próxima terça, reinaugura seu site (nos endereços www.socrates.esp.br ou www.socrates.coc.com.br), melhorado com multimídia e comentários próprios.

Do disco que acaba de produzir, vai oferecer no site canções suas como Festa Corintiana em formato mp3. Os versos dizem: "Já raiou a liberdade/ Negro e branco construindo uma nação/ Com as mãos entrelaçadas/ A fé na mais pura expressão." E a torcida nacional, sem ciúme algum, pode reagir:

"Doutor, eu não me engano, seu coração é corintiano."

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Dr. John – Duke Elegant (2000)


Uma interpretação única de clássicos de Duke Ellington pelo mestre vudu. O arranjo de seu sexteto de New Orleans para “Mood Indigo” é fresco e relaxado, ele canta como ninguém “Do Nothing Til You Hear From Me” e enche de soul e funk “Caravan”, além de algumas obras mais obscuras do maestro, como “On The Wrong Side of the Railroad Tracks” ou “I’m Gonna Go Fishin’”. Um tributo a um dos maiores músicos norte-americanos, e, porque não, um dos maiores do mundo. The Duke estaria orgulhoso. Ouça:

01. On The Wrong Side Of The Railroad Tracks
02. I’m Gonna Go Fishin’
03. It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)
04. Perdido Street Blues
05. Don’t Get Around Much Anymore
06. Solitude
07. Satin Doll
08. Mood Indigo
09. Do Nothin’ Till You Hear From Me
10. Things Ain’t What They Used To Be
11. Caravan
12. The Flaming Sword

Dr. John – Creole Moon (2001)


O ritmo domina esse disco que atravessa os vários estilos que influenciaram a carreira de Dr. John. O funk de “Bruha Bembe” relembra o início de sua carreira com o mistério do Night Tripper, “You Swore” bebe do balanço de “Right Place, Wrong Time”, e as mais sofisticadas “Holdin’ Patern”, “Queen of Cold” e “Creole Moon” mostram quão extenso é seu terreno musical. Ainda encontramos quatro canções co-escritas com o falecido Doc Pomus, como a profunda “Imitation of Love”. Um disco aonde depois de uma década Dr. John volta a publicar material inédito, dando uma volta em nossas ideias de blues, funk e boogie woogie. Indispensável. Baixa e ouça:

01. You Swore
02. In The Name Of You
03. Food For Thot
04. Holdin’ Pattern
05. Bruha Bembe
06. Imitation of Love
07. Now That You Got Me
08. Creole Moon
09. Georgianna
10. Monkey and Baboon
11. Take What I CanGet
12. Queen of Cold
13. Litenin’
14. One 2AM Too Many

Dr. John – Dr. John’s Gumbo (1972)


Logo após gravar o disco de 1971 “The Sun, Moon & Herbs” com a participação de Mick Jagger e Eric Clapton, Dr. John encontra nesse magnífico Gumbo uma volta às suas raízes, através de doze clássicos de New Orleans de nomes como Professor Longhair, Huey Smith, Earl King ou Ray Charles – que ainda que não tenha nascido lá, morou e compôs no começo dos anos 50. Esse ótimo disco serve como convite aos que não conhecem New Orleans a pegar o próximo vôo direto pra lá. Um clássico.

01. Iko Iko
02. Blow Wind Blow
03. Big Chief
04. Somedoby Changed The Look
05. Mess Around
06. Let The Good Times Roll
07. Junko Partner
08. Stackalee
09. Tipitina
10. Those Lonely, Lonely Nights
11. Huey Smith Medley
12. Li’l Liza Jane

Dr. John – Going Back To New Orleans (1992)


Esse disco traça uma linha dentro da música da cidade, começando em meados do século 19 com Louis Moreau Gottschalk, um compositor clássico influenciado pelos cantos africanos e pelas danças dos escravos do Congo Square de New Orleans. Acompanhado por alguns dos músicos pioneiros da cidade, como Danny Barker, Pete Fountain ou os Neville Brothers, Dr. John dá nova vida ao trabalho de Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, James Booker, Professor Longhair, Fats Domino, Smiley Lewis a Huey “Piano” Smith. Dos primórdios do jazz ao junkie blues, esse disco abrange a tudo, desde êxitos conhecidos como “Bassin Street Blues” ou “Careless Love”  - com magníficas linhas de piano – e a pérolas esquecidas como “I Thought I Heard Buddy Bolden Say” ou “How Come My Dog Don`t Bark”, e o melhor é que faz com que soem atemporais e vivas. Escutem a esse passeio pela história de New Orleans conduzido por Dr. John aqui:

01. Litanie Des Saints
02. Careless Love
03. My Indian Red
04. Milneburg Joy
05. I Thought I Heard Buddy Bolden Say
06. Basin Street Blues
07. Didn’t He Ramble
08. Do You Call That A Buddy
09. How Come My Dog Don’t Bark When You Come Around
10. Good Night, Irene
11. Fess Up
12. Since I Fell For You
13. I’ll Be Glad When You’re Dead, You Rascal You
14. Cabbage Head
15. Goin’ Home Tomorrow
16. Blue Monday
17. Scald Dog Medley – I Can’t Go On
18. Goin’ Back To New Orleans

Dr. John – Gris Gris (1968)


O mitológico personagem de Rebennack vem à tona nesse disco, Dr. John, the Night Tripper, um dos mais importantes embaixadores dos blues. É um clássico com pelo menos quatro faixas de culto: “Gris-Gris Gumbo Ya Ya”, “Mama Roux”, “Jump Sturdy” e “I Walk On Gilded Splinters”, cada uma com refrões pegadiços e estranhos efeitos sonoros, acompanhados pelo vocal cortado e os riffs de teclado do doutor e essa percussão Afro-Caribenha típica de New Orleans, criando esse novo ritmo batizado de “voodo music”. Dá pra sentir porquê.

01. Gris-Gris Gumbo Ya Ya
02. Danse Kalinda Ba Doom
03. Mama Roux
04. Danse Fambeaux
05. Croker Courtbullion
06. Jump Sturdy
07. I Walk On Guilded Splinters

Dr. John – In The Right Place (1973)


Começamos com The Meters (Leo Nocentelli, Arthur Neville, George Porter e Joseph Modeliste), esse funk que não deixa uma nota perdida ou uma batida fora de sincronia. A isso agregamos o multi-instrumentista e produtor Allen Toussaint, com seus impecáveis arranjos dos vocais e dos metais. Isso tudo coroado por sete temas originais de Rebennack e ainda quatro ótimas covers e temos esse discasso de 1973, que ainda hoje parece atual. Não só pelos hits “Right Place, Wrong Time” e “Such A Night”, mas também pela funkeira “Same Old, Same Old”, os insultos verbais de “Qualified” ou o soul de “Shoo Fly Marches On”. Uma bela peça de funk-soul de New Orleans do início dos anos 70. Ouça:

01. Right Place, Wrong Time
02. Same Old, Same Old
03. Just The Same
04. Qualified
05. Traveling Mood
06. Peace Brother, Peace
07. Life
08. Such A Night
09. Shoo Fly Marches On
10. I Been Hoodood
11. Cold Cold Cold

Grandes Nomes do Blues 34 – Dr. John


Malcom John “Mac” Rebennack Junior, conhecido como “Dr. John The Nnight Tripper”, nasceu em New Orleans em Novembro de 1940 e ainda adolescente já cantava e tocava o piano. Em pouco tempo atreveu-se a acompanhar na guitarra e nos teclados a grandes figuras locais, como Joe Tex ou Professor Longhair, e a produzir e fazer os arranjos dos estúdios Cosmio Studio – frequentados por Alain Toussaint – até editar alguns singles sob o pseudónimo de Mac Rabennack. Um inesperada ferida na mão o obrigou a deixar a guitarra e acabou mudando-se a Los Angeles nos anos sessenta.

Nos anos sessenta, quando começou a fusionar blues, jazz, R&B e rock, Rebennack acabou criando um fórmula que chamaria de “voodoo music”, estilou que se caracterizou por combinar a voz tosca de Dr. John com metais, blues intenso, funk ao estilo “Mardi Grass” e psicodelia elétrica. Seus shows ao vivo se converteram numa espécie de ritual músico-religioso, com todos os músicos – incluindo as banda de abertura – envoltos com roupas coloridas, plumas, peles e um cenário pra lá de exótico.

Essas apresentações eram uma mistura do autêntico vudu tradicional com o “hokum” de New Orleans e eram o complemento ideal para a música de Dr. John. Prova disso era “Walk On Gilded Splinters” e o próprio nome de seu primeiro disco de 1968, “Gris Gris” – recuperado de uma jam session esquecida de Sonny e Cher aonde ele mesmo havia colaborado. Esse e o próximo disco, Babylon (1969), tinham um grande simbolismo vudu e de crítica social, tanto que a música muitas vezes dificultava o entendimento das letras. Em quanto à harmonia, gostava do swing e da sensualidade, mas acima de tudo se baseava no reportório típico de New Orleans: jazz, cajún francês, criolo e R&B. A isso incluiria rapidamente o teclado eletrônico ao seu estilo, além de colocar à prova os demais guitarristas de sua geração com a sarcástico “Lonesome Guitar Strangler”. Sua filosofia musical foi tão inovadora que seus adeptos mais fiéis o adoravam como se pertencentes a um culto, e durante isso tudo Dr. John não hesitava em apoiar a outros músicos como Canned Heat, Jackie DeShannon, B.B. King, Buddy Guy, Albert Collins ou John Sebastian. Em seu disco de 1971, “The Sun, Moon &Herbs”, é acompanhado por Eric Clapton e Mick Jagger.

Em 1972, no espetacular “Dr. John’s Gumbo”, foram melhor acolhidos os temas clássicos de New Orleans – “Iko Iko” ou “Junko Partner” – interpretados com suas particulares fusões psicodélicas. Porém foi no ano seguinte que Dr. John arrasou com o mercado ao lançar “Right Place, Wrong Time”, música com colaboração com The Meters, a primeira banda de funk e soul de New Orleans. O público ficou vidrado pela voz cortada de Dr. John e por esse ritmo novo, o que impulsou as vendas e colocou a canção no topo das listas, fazendo desse o seu maior êxito.

Nos discos posteriores Dr. John tentou sem êxito repetir o sucesso, nem mesmo atrevendo-se com a onda “disco”. Apareceu também no espetáculo “Last Waltz” do grupo The Band, ainda que suas colaborações com Mike Bloomfield ou John Hammond tiveram pouco interesse. Finalmente, em 1981 voltou a disfrutar da fama graças a um disco aonde voltava ao formato puro do estilo de New Orleans. Uma vez quebradas as correntes do vudu ficam patentes os ensinamentos de Professor Longhair e de Huey “Piano” Smith.

Dr. John continuou experimentando, gravou clássicos do jazz e da música popular, aprofundou-se na história de New Orleans, reinterpretou a Duke Ellington e realizou uma série de retrospectivas de outros músicos. Porém, ainda que com boas respostas da crítica, esse seu lado mais inovador não convencia ao público em geral, e em 1990 se meteu de cabeça no jazz, formando o trio Bluesiana Triangle junto ao saxo de David “Fathead” Newman e ao grande baterista de bebop Art Blakey. Não contente, seguiu colaborando com bandas como Portishead, Squeeze, Primal Scream ou Supergrass, fãs incondicionais de seus primeiros discos. Em 2000 assinou contrato com a Blue Note Records e criou sua própria distribuidora, a Skinji Brim. Em 2001 seu disco “Creole Moon” foi bem recebido, e nele pode-se perceber suas experimentações e jogos entre os diferentes estilos musicais, como o jazz, o blues e o funk. Em 2005 editou um EP de quatro músicas em homenagem à sua amada New Orleans depois dos desastres do furação Katrina, “Sippiana Hericane”, e segue em ativo até os dias de hoje.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Crise

Pobreza, emprego e gasto público
Christos Papatheodorou

A recente crise econômica mundial tem efeitos evidentes sobre a pobreza e a deterioração do nível de vida dos grupos de população mais vulneráveis. No entanto, em lugar de questionar o paradigma dominante no que se refere à organização e administração da economia, a crise levou a um fortalecimento dos argumentos neoliberais a favor da disciplina fiscal, da redução do gasto público e da desregulamentação do mercado de trabalho. Uma das principais consequências é a forte pressão para aumentar o recorte de gastos sociais e a liberalização dos sistemas de protecção civil. No caso da Grécia, aonde as consequências da crise são mais graves, é um fato revelador. Com a intenção de aplicar medidas de austeridade, se cultivam e reproduzem certos mitos, até o ponto de chegar a dominar o debate público e político.

Entre os mitos mais generalizados que os meios de comunicação adoram publicar está o que afirma que os gregos não trabalham muito (em comparação com outros europeus) e que disfrutam de um nível de vida elevado. Na verdade os dados de Eurostat contradizem essas afirmações e mostram que os gregos trabalham mais horas por semana que o resto dos europeus e que a Grécia tem o maior índice de pobreza (20%) da UE-15 e um dos maiores da UE-27. Deve-se observar, ainda, que esses são dados de 2009, referentes aos ingressos de 2008. Ou seja, antes da crise econômica. Desde a década de 1990, quando se dispõe de dados comparativos dos países da UE, a pobreza sempre foi mais elevada na Grécia que a média comunitária. Estes dados estão baseados nas linhas de pobreza definidas de modo nacional (adotando a definição utilizada de modo geral do 60% do ingresso equivalente médio). No entanto, a comparação com uma linha de pobreza comum a todos os países da UE permite mostrar as verdadeiras dimensões das diferenças entre o nível de vida dos gregos e do resto dos europeus. Cálculos comparativos dos índices de pobreza na UE, baseados na linha de pobreza grega e levando em conta as diferenças de poder aquisitivo entre países, mostram que na maioria dos países da UE-15 (com a exceção de Portugal, Itália e Espanha) menos de 6% da população tem níveis de vida tão baixos como os 20% dos gregos mais pobres.

Outro dos mitos que dominam o debate atual associa a pobreza com o desemprego. Esse ideia fomenta a ideia neoliberal de uma desregulamentação do mercado de trabalho e do aumento de contratos de trabalho flexíveis e temporais ou a tempo parcial. Não há dúvida que o desemprego está associado a um risco enorme de pobreza. Ainda assim, nossos cálculos, baseados nos microdados da Eurostat, revelaram que diversos grupos ocupacionais, como agricultores e empregados com contratos temporais ou a tempo parcial, enfrentem um risco elevado de pobreza similar. O emprego não assegura que uma pessoa saia da pobreza. Se nos centramos na contribuição à pobreza geral, os dados também demonstram que na Grécia (como na maior parte da UE) uma proporção muito grande dos pobres vive em lares aonde o chefe de família está trabalhando, e não desempregado. Na Grécia, três de cada cinco pobres vivem em lares aonde o chefe de família está empregado. Os provas estatísticas apontam que os contratos de trabalho temporais ou a tempo parcial aumentam o risco de pobreza da população trabalhadora. Um flexibilização maior no mercado de trabalho tem uma consequência desfavorável na pobreza  da população ativa. Talvez reduza o desemprego, mas ao mesmo tempo aumenta a pobreza dos trabalhadores ao dividir pela metade (e às vezes mais) empregos remunerados ligeiramente acima da linha de pobreza.

O discurso dominante também vitimiza a protecção social e o gasto correspondente como principais colaboradores da atual crise. Essa atitude fomenta a hostilidade contra as políticas sociais, consideradas parte do problema e não da solução, como demonstrou a experiencia da crise de 1929. Os gastos sociais gregos, medidos como porcentagem do PIB, são inferiores aos correspondentes porcentagens médios do total da UE. O sistema de protecção social do país é particularmente débil em reduzir a pobreza e a desigualdade. As transferências sociais (sem levar em conta as pensões) são com diferença a influência distributiva mais fraca de todos os países da UE. O programa de austeridade erosionou os direitos assistenciais e debilitou ainda mais o já fraco sistema de protecção social grego. Entre outras medidas, foram reduzidas de maneira importante as pensões (atuais e futuras), as prestações da assistência social e realizaram-se enormes recortes nos serviços sociais. A nova pensão mínima de 360 euros mensais (financiada com os impostos gerais) está muito abaixo da linha de pobreza de um lar unipessoal. E esses 360 euros podem ser reduzidos ainda mais se a situação econômica piora. O seguro desemprego também está por baixo da linha de pobreza do país. As medidas de austeridade e estabilização aumentarão a pobreza e a dispersão e reduzirão ainda mais os ingressos dos setores da população com uma maior proporção no consumo (as camadas medias e baixas), o que afetará profundamente a demanda social e o crescimento.

Notas do Brasil desde longe

A mancha que crece no Brasil
Os escândalos de corrupção provocaram a queda de quatro ministros desde Junho e o de Esportes está na corda bamba.
Fernando García – correspondente de LA VANGUARDIA

A sujeira estava lá, como está e sempre esteve em todos os países. Porém foi a apenas alguns meses, logo após Dilma Rousseff chegar à presidência, que a mancha de corrupção apareceu descarada e começou a estender-se rapidamente sobre o Brasil; até o ponto de ofuscar o brilho de seu êxito económico e levantar receios sobre a organização da Copa do Mundo de 2014. Em quatro meses caíram quatro ministros. E o de Esportes está na fila.

Essa vertiginosa proliferação de escândalos não se pode entender sem levar em conta as particularidades da política brasileira. Para começar, o Executivo se sustenta sobre uma “base aliada” composta por uma dezena de partidos das mais variadas vertentes: a metade dos 22 representados da Câmara, aonde se sentam 513 deputados.

A coalizão do Governo está liderada por duas forças tão díspares como o esquerdista Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de centro-direita. O partido da presidenta (PT) tem 86 deputados na Câmara Federal: um mero 17% do total. Daí a necessidade da própria coalizão e de contínuos pactos de geometria variável.

Porém, como tantas e tão variadas formações chegam a coligar-se e a entender-se para legislar e governar? Somente através da distribuição de cargos e favores e transações de projectos e propostas. Tudo isso com as correspondentes atribuições  orçamentárias como elemento chave das negociações. Não há analista político que ponha em dúvida a vigência dessa engrenagem. E são muitos os que pedem uma reforma urgente do sistema, devido ao perigo que engloba.

Para o cientista político Leonardo Avritzer, da Universidade de Minas Gerais, a corrupção no Brasil tem uma relação direta com o sistema eleitoral, com a fragmentada estrutura de partidos e com a insuficiência de recursos legalmente cedidos a financiar as formações. “As coalizões formadas para governar – afirma – converteram-se num sistema de troca no qual a nomeação dos membros do governo é utilizada como meio de arrecadação para as campanhas.”

Mas a história recente demonstra que o dinheiro desviado dos cofres públicos nem sempre fica nos partidos; às vezes chega aos bolsos de alguns dirigentes.

Desde que o primeiro escândalo pôs em evidência a seu ministro da Presidência e homem de confiança, Antonio Palocci, Rousseff exibiu uma insólita firmeza, de tolerância zero, ao enfrentar a corrupção. A presidenta obrigou a todos os implicados a renunciar: não só Palocci e os três ministros que o seguiram ao após a descoberta de outras redes de desvio de verbas, mas também dezenas de altos cargos e funcionários implicados. É a operação faxina, ainda em andamento.

Em determinados momentos os castigos fizeram tremer as bases da coalizão governamental. O risco era e é óbvio para a chefe de governo. Mas Rousseff conquistou o apoio da população, que a cada momento sai às ruas para pedir-lhe que não freie seu desejo depurador. Não é de se estranhar, dada a gravidade dos danos causados. Alguns dias atrás a influente Federação da Indústrias de São Paulo publicou um estudo segundo o qual no ano passado os desvios de fundos públicos custaram ao Brasil entre 21 e 35 bilhões de euros: de 1,4% a 2,3% do PIB.

Todos os escândalos descobertos até agora no seio do Governo Rousseff explodiram a partir de informações da imprensa brasileira, mais ativa que nunca a respeito. A quantidade de material a as acusações cruzadas durante as correspondentes brigas internas revelam um denso tráfico de dossiers entre facções que se atacam e buscam vingança.

A presidenta é consciente dos riscos que corre. Ao seu ministro de Esportes, Orlando Silva, concedeu o benefício da duvida enquanto a Promotoria investiga sua participação no suposto financiamento ilegal do Partido Comunista através de uma ONG. Ao fim dessa edição, Silva tentava explicar-se na Câmara de Deputados.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Steve Jobs



As coisas que todo mundo é muito educado para escrever sobre Steve Jobs
Por Ryan Tate

Nos dias após a morte de Steve Jobs, como é o costume, os seus amigos e colegas compartilharam suas melhores lembranças do co-fundador da Apple. Ele foi aclamado como “gênio” e “o maior CEO da geração”, por especialistas e jornalistas de tecnologia. Mas a reputação de um grande homem deve ser capaz de resistir à verdade completa. E, verdade seja dita, Jobs conseguia ser terrível com as pessoas, e o seu impacto no mundo não foi uniformemente positivo.

Nós já mencionamos muitas das coisas boas que Jobs fez durante a sua carreira. Suas conquistas foram amplas e impossíveis de resumir com facilidade. Mas pode-se enxergar o escopo do seu sucesso dessa forma: causar mudanças na sua indústria é o sonho de qualquer empreendedor, e Jobs transformou para sempre meia dúzia de indústrias diferentes, de computação pessoal atelefonia, passando por música, animação, videogames e pela indústria editorial. Ele era um sábio, um grande motivador, um juiz decisivo, um influenciador com visão de longo prazo, um excelente mestre de cerimônias e um estrategista brilhante.

Mas eis o que ele não era: perfeito. De fato, Steve fez coisas profundamente perturbadoras na Apple. Coisas rudes, desdenhosas, hostis, rancorosas: os empregados da Apple — aqueles que não estavam presos por contratos de confidencialidade — tinham uma história diferente para contar durante todos esses anos sobre Jobs e todo o medo, manipulação de bullying que o acompanhavam pela empresa. Jobs também contribuiu para problemas de nível global. O sucesso da Apple foi literalmente construído nas costas de trabalhadores chineses, incluindo crianças, todos eles aguentando turnos longos e a sombra de punições brutais por erros. E apesar de todo o papo sobre incentivar a expressão individual, Jobs impôs regras paranoicas que centralizaram o controle sobre quem poderia dizer o que em seus aparelhos e em sua empresa.

É particularmente importante sublinhar os defeitos de Jobs neste momento. O seu sucessor, Tim Cook, tem a oportunidade de mapear um novo caminho para a empresa, de estabelecer o seu estilo próprio de liderança. E, graças ao sucesso da Apple, os estudantes do estilo Steve Jobs de liderança nunca foram tão numerosos no Vale do Silício. Ele foi idolatrado e emulado muitas vezes enquanto vivo; em sua morte, Jobs se tornará um ícone ainda maior.

Depois de celebrar as conquistas dele, nós deveríamos falar livremente sobre o lado negro de Jobs e da empresa que ele ajudou a fundar. Este é o seu catálogo de piores momentos:

Censura e autoritarismo


A internet permitiu a pessoas do mundo todo se expressarem de maneira mais fácil e livre. Com a App Store, a Apple reverteu este processo. O iPhone e o iPad constituem a mais popular plataforma de computação portátil dos EUA, os mais importantes palcos de mídia e software. Mas você precisa da aprovação da Apple para colocar qualquer coisa nos aparelhos. E este é um poder que a empresa usa agressivamente.

Em nome de proteger as crianças dos malefícios do erotismo, e os adultos deles mesmos, Jobs baniu aplicativos de arte gay, guias de viagens gays,cartoons políticos, imagens sensuais, panfletos de candidatos políticos, caricaturas políticas,páginas duplas de revistas de moda e sistemas inventados pela concorrência, além de outras coisas consideradas moralmente questionáveis.

Os aparelhos da Apple nos conectaram a um mundo de informação, mas eles não permitem uma expressão completa de ideias. De fato, as pessoas que deveriam ser servidas pela Apple — “os desajeitados, os rebeldes, os encrenqueiros”, como disse o famoso comercial — foram particularmente excluídos pelas políticas de Jobs. O fato da empresa mais admirada dos Estados Unidos ter seguido um caminho tão contrário aos ideais de liberdade do país é profundamente preocupante.

Mas Jobs também nunca pareceu muito confortável com a ideia de empregados com todos os seus direitos e uma imprensa completamente livre. Dentro da Apple, há uma cultura de medo e controle ao redor das comunicações; a “Equipe Mundial de Lealdade” da Apple é especializada em caçar quem vaza informações, confiscando celulares e fazendo buscas em computadores alheios.

A Apple usa táticas coercivas também com a imprensa. A sua primeira reação a artigos que ela não gosta é geralmente de manipulação e importúnio. Depois, quem sabe ela solte estrategicamente um artigo contraditório.

Mas a Apple não se contenta com isso. Ela tem uma equipe jurídica que não se importa em aniquilar alvos pequenos. Em 2005, por exemplo, a empresaprocessou o blogueiro Nick Ciarelli, de 19 anos, por dar antes da hora a notícia — correta — da existência do Mac Mini. O caso não foi encerrado até que Ciarelli concordou em fechar o seu blog ThinkSecret para sempre. E nem vou explicar de novo toda a história com o Gizmodo americano e o protótipo do iPhone 4, que chegou ao ponto da Apple conseguir fazer com que a polícia invadisse a casa de um editor.

Há cerca de um mês tivemos talvez a mais assustadora amostra das tendências fascistas da Apple, quando dois agentes privados de segurança, trabalhando para a Maçã, revistaram a casa de um homem em San Francisco, à procura de um outro protótipo perdido de iPhone. Eles ameaçaram causar problemas com a imigração, e o homem disse que os agentes de segurança estavam acompanhados por policiais à paisana e não se identificaram como civis, dando a impressão de serem oficiais de polícia.

Fábricas exploradoras, trabalho infantil e direitos humanos

As fábricas da Apple na China regularmente empregam jovens adolescentes e pessoas abaixo da idade mínima de trabalho legal, que é de 16 anos. Elas submetem os empregados a muitas horas de trabalho e tentam acobertar tudo. Isso segundo um relatório da própria Apple, em 2010. Em 2011, a Apple relatou que o problema de trabalho infantil piorou.

Em 2010, o jornal Daily Mail conseguiu infiltrar um repórter dentro de uma fábrica chinesa que monta produtos para a Apple. Veja um trecho traduzido da reportagem:

Com o complexo funcionando em capacidade máxima de produção, 24 horas por dia, sete dias por semana, para atingir a demanda global pelos telefones e computadores da Apple, um dia típico começa com o hino chinês sendo tocado pelos alto-falantes, com as palavras ‘Levantem-se, levantem-se, levantem-se, milhões de corações com uma só mente’.

Como parte deste controle Orwelliano, o sistema de comunicados públicos grita anúncios o tempo inteiro, sobre quantos produtos foram feitos, sobre uma nova quadra de basquete construída para os empregados, sobre como os empregados devem ‘valorizar a eficiência a cada minuto, a cada segundo’.

Com outros slogans corporativos pintados nas paredes das oficinas — incluindo apelos como ‘alcance metas até que o sol não mais se levante’ e ‘reunamos toda a elite e a Foxconn será cada vez mais forte’ –, os empregados trabalham até 15 horas diárias.

Ao final de corredores estreitos, que lembram uma prisão, eles dormem em quartos lotados, em beliches triplas para economizar espaço. Os colchões são simples tapetes de bambu.

Apesar das temperaturas no verão chegarem a 35 graus, com 90% de humidade, não há ar condicionado. Alguns trabalhadores dizem que há dormitórios que abrigam mais de 40 pessoas e são infestados com formigas e baratas, e que é difícil dormir por causa do barulho e do fedor.

Uma empresa pode ser julgada pela forma como trata os seus mais humildes empregados. Serve como exemplo para o resto da empresa, ou, no caso da Apple, para o resto do mundo.

Em pessoa e em casa


Antes mesmo de ser afastado da empresa pela primeira vez, Jobs já tinha fama de agir como um tirano. Ele frequentemente diminuía pessoas, esbravejava contra elas e pressionava até que chegassem ao seu ponto de ebulição. Na busca pela excelência, ele deixava de lado a educação e a empatia. Seus abusos verbais nunca pararam. Ainda no mês passado a Fortune reportou uma “humilhação pública” de meia hora a que Jobs submeteu uma equipe da Apple:

“Alguém poderia me dizer o que o MobileMe deveria ser capaz de fazer?” Depois de receber uma resposta satisfatória, ele continuou: “Então por que caralhos ele não faz isso?”

“Vocês mancharam a reputação da Apple”, ele falou. “Vocês deveriam odiar uns aos outros por terem se decepcionado”.

Jobs demitiu o chefe da equipe ali mesmo.

Em seu livro The Second Coming of Steve Jobs, sobre a época de Jobs na NeXT e o seu subsequente retorno à Apple, Alan Deutschman descreveu o tratamento duro que Jobs dava aos seus subordinados:

Ele os elogiava e inspirava, às vezes de maneira muito criativa, mas também apelava para intimidação, provocação, repreensão e depreciação… Quando ele encarnava o Steve do Mal, não parecia se importar com os danos severos que causava a egos e emoções… súbita e inesperadamente, olhava para alguma coisa no qual eles estavam trabalhando e dizia que estava uma “merda”.

Jobs também tinha suas limitações pessoais. Não há registros públicos dele jamais ter feito doações para instituições de caridade, apesar do fato de ter ficado rico com o IPO da Apple em 1980 e ter acumulado um patrimônio líquido estimado em mais de 7 bilhões de dólares ao final da sua vida. Depois de encerrar os programas de filantropia da Apple em 1997, quando voltou à empresa, ele nunca mais os reinstaurou, apesar da empresa ter voltado a nadar em lucros.

É possível que Jobs tenha feito doações anônimas, ou que ele fará uma doação póstuma, mas o fato é que ele jamais abraçou ou encorajou a filantropia de forma parecida com, por exemplo, Bill Gates, que já arrecadou US$ 60 bilhões para caridade e se juntou a Warren Buffet para incentivaroutros bilionários a doarem ainda mais.

“Ele claramente não tinha tempo”, foi o que disse o diretor da breve fundação de caridade de Jobs ao New York Times. E parece ser isso mesmo. Jobs não levava uma vida equilibrada. Ele era profissionalmente incansável. Trabalhava por longos períodos e permaneceu CEO da empresa até seis semanas antes da sua morte. Isso resultou em produtos incríveis, apreciados pelo mundo todo. Mas não significa que a sua rotina workaholic seja algo a se imitar.

Houve um tempo em que Jobs lutou contra a ideia de se tornar um homem de família. Ele teve uma filha chamada Lisa fora do casamento, aos 23 anos, e, segundo a Fortune, passou dois anos negando paternidade, chegando a declarar oficialmente que “não poderia ser o pai de Lisa, por ser ‘estéril e infértil’, não tendo, desta forma, capacidade física de procriar”. Jobs finalmente assumiu a paternidade, conheceu e casou com a sua atual viúva, Laurene Powell, e teve mais três filhos. Lisa estudou em Harvard e é hoje uma escritora.

Steve Jobs criou muitos objetos lindos. Ele tornou aparelhos digitais mais elegantes e fáceis de usar. Ele fez a Apple Inc. ganhar muito dinheiro depois que as pessoas já a consideravam morta. Ele sem dúvida servirá como modelo para muitas gerações de empreendedores e líderes de negócios. Se isso é uma coisa boa ou ruim, depende de quão honestamente a sua vida é avaliada.

Chomsky


Chomsky, de cientista provocador a guru


Noam Chomsky é, certamente, um dos intelectuais mais brilhantes que o século XX. Suas ideias deram nova configuração a problemas clássicos da linguística e da psicologia. Fez importantes interferências nos debates de filosofias da mente, da linguagem e da ciência. Contribuiu significativamente para o estabelecimento dessa grande área científica a que hoje se dá o nome de Ciências Cognitivas. Envolveu-se em densos debates públicos com outros importantes intelectuais, como Piaget, Foucault, Quine e Putnam entre outros.

Quando suas ideias começaram a circular-, houve quem as interpretasse como uma verdadeira revolução científica, nos termos de Thomas Kuhn. Talvez uma avaliação que pecou pelo excesso, considerando que não havia (como continua não havendo) um paradigma dominante nos estudos da linguagem verbal. O que Chomsky fez foi repor no centro do cenário da investigação científica da linguagem, da cognição e do cérebro uma perspectiva racionalista e inatista. Com isso, reformulou os problemas, estimulou novas direções investigativas e se pôs como contraponto a outros arcabouços teóricos. Nada disso, obviamente, é pouca coisa.
Além de cientista brilhante e provocador, Chomsky tem sido um intelectual engajadíssimo nas questões políticas contemporâneas. Tornou-se um crítico feroz do estamento militar-industrial-governamental dos EUA e da política externa de seu país. É hoje a personalidade mais destacada da chamada esquerda estadunidense e referência algo difusa dos muitos movimentos altermundialistas. Tornou-se guru de boa parte da esquerda mundial, apesar de seu credo político não ir muito além de uma retomada dos ideais políticos do Iluminismo, com alguns temperos socialistas libertários. Suas concepções políticas se centram no indivíduo – em seus direitos fundamentais e em sua liberdade. O que Chomsky faz é um reavivamento dos ideais políticos dos fundadores dos Estados Unidos. Nesse sentido, ele é, antes de tudo, um leitor radical da Declaração de Independência e da Constituição de seu país.
Como linguista, estreou na cena pública em 1957 ao publicar um pequeno livro (Estruturas Sintáticas), com o qual desconcertou a linguística que se fazia nos Estados Unidos desde Bloomfield. Era uma tradição fortemente empiricista, cujo modelo analítico jamais ultrapassava a organização superficial dos enunciados.
Saber linguístico do falante
Chomsky demonstrou que um tal modelo não era capaz de descrever e explicar o saber que o falante tem de sua língua –  um saber que lhe dá competência para produzir e entender um conjunto infinito de enunciados. Ou seja, de fazer uso infinito de meios (gramaticais) finitos, o que caracteriza a criatividade linguística: os falantes não apenas reproduzem e compreendem enunciados “velhos”, mas produzem e entendem enunciados novos.
À criatividade acrescenta-se a capacidade que o falante tem de emitir juízos de gramaticalidade, ou seja, dizer se um enunciado pertence ou não à língua que fala. Mais ainda: o falante percebe idênticas relações sintáticas em enunciados cuja organização superficial é diferente (como entre construções ativas e passivas) e percebe diferenças nas relações sintáticas entre os termos de enunciados cuja organização superficial é aparentemente idêntica (como João é fácil de enganar João é capaz de enganar). Por fim, diante de construções ambíguas (como João viu a menina saindo da escola), o falante é capaz de reconstruir os dois quadros de relações subjacentes ao enunciado superficial.
Um modelo gramatical empiricista não conseguirá jamais representar formalmente essas características do saber linguístico do falante. Não dispõe de recursos para dar conta da criatividade e conflita com o falante: vê diferenças onde o falante percebe igualdades; e vê igualdades onde o falante vê diferenças. Por isso tudo, Chomsky descartou o modelo do chamado estruturalismo norte-americano e propôs outra linguística, atribuindo-lhe como objeto o saber linguístico do falante e como tarefa a construção de um modelo formal capaz de representar esse saber.
Nos últimos 54 anos, Chomsky e seus seguidores desenharam e redesenharam a sua sintaxe num dos mais belos exercícios de arquitetura de modelos formais que a ciência contemporânea nos oferece. Trata-se de uma engenhosa sequência de experimentos formais em duelo com dados da empiria – dados que vinham, numa primeira fase, basicamente da língua inglesa (o que foi motivo de muitas críticas) e que, posteriormente, passaram a vir também de outras várias línguas, embora nunca na perspectiva de uma linguística de corpus. Não há, na linguística chomskyana, como pressuposto epistemológico, a exigência de coletar sistematicamente uma grande quantidade de dados. Suas bases racionalistas descartam procedimentos indutivos (afinal, a língua é infinita) e, por outro lado, se confia no saber intuitivo do falante e em seus juízos de gramaticalidade.
Num balanço deste meio século, pode-se dizer que houve um aprofundamento da compreensão de fenômenos sintáticos e, em especial, de sua complexidade. Demonstrou-se a insuficiência de uma concepção empiricista para dar conta da sintaxe das línguas humanas. Descartaram-se inúmeras alternativas formais que a teoria experimentou e que se mostraram igualmente insuficientes. Apesar disso tudo, não se alcançou (ainda) um modelo suficientemente satisfatório. Continua, portanto, sem resposta a pergunta quanto às propriedades que deve ter um modelo formal capaz de representar a sintaxe das línguas humanas.
Saber inato
Depois de ter desmontado, em 1957, as bases do estruturalismo norte-americano, Chomsky provocou novo frenesi ao escrever, em 1959, uma resenha do livroComportamento Verbal, do psicólogo comportamentalista B.F. Skinner. Nela, Chomsky vai argumentar que uma teoria cognitiva de tipo comportamentalista é incapaz de dar conta do processo pelo qual uma criança passa de não falante a falante da língua de sua comunidade.
Chomsky chama a atenção para o fato de que se trata de um processo surpreendente, caso se considere a pobreza dos dados a que a criança é exposta: a quantidade é pequena (considerando que as possibilidades são infinitas, ou seja, a criança nunca será exposta à língua toda) e de qualidade relativamente baixa (fragmentários, com muitos arranques em falso, lapsos e interrupções).
Apesar da pobreza de estímulos, a criança torna-se um falante autônomo, sendo capaz de produzir e entender enunciados que ela não ouviu antes, isto é, ela passa a fazer uso infinito dos meios gramaticais finitos. E esse processo se dá de forma bastante homogênea em todas as partes do mundo, mais ou menos na mesma faixa etária (por volta dos 2 anos) e sem que haja qualquer ensino sistemático.
A conclusão é de que a criança não aprende a língua apenas por imitação nem por mecanismos de estímulo-resposta. Chomsky descarta, assim, o comportamentalismo e postula que só é possível explicar tal processo cognitivo admitindo-se a existência de um saber inato – específico da espécie humana –, que define o que é uma língua humana possível e que permite à criança, diante dos poucos e precários dados que recebe do seu ambiente, descobrir a gramática da língua que aí se fala. A esse saber inato Chomsky deu o nome de “dispositivo de aquisição da linguagem” ou, ainda, de Gramática Universal (GU).
Esta última expressão não deve ser entendida como designando propriedades que estariam presentes em todas as línguas. Diz respeito, na verdade, ao conjunto de princípios que definem uma língua humana possível. Sob outro olhar, significa dizer que as línguas humanas não variam indefinidamente. Elas são diferentes entre si, mas se configuram sob restrições gerais estritas dadas pelas características do cérebro humano.
Módulo da linguagem
É nesse sentido que Chomsky diz ser a faculdade da linguagem verbal um órgão do cérebro, um módulo específico e autônomo, claramente distinto de outros módulos que têm a seu cargo a articulação e percepção dos sons da fala e a formulação dos pensamentos em termos conceituais. O módulo da linguagem produz sequências abstratas que devem ser “legíveis” aos outros módulos, que lhe darão, na interface, uma roupagem articulatória e conceitual.
Por isso, a meta efetiva do linguista é alcançar a explicitação desses princípios da GU e do modo como eles operam no desenho de cada uma das línguas e, portanto, na descoberta que a criança faz da gramática da língua de seu ambiente.
Chomsky considera que o módulo da linguagem, em sendo um objeto natural (um órgão biológico), é a única dimensão da linguagem passível de uma abordagem científica. Todo o resto – ou seja, os usos que fazemos da linguagem (que ele reúne sob o termo pragmáticaem seu livro Novos Horizontes no Estudo da Linguagem e da Mente, de 2000, com tradução brasileira de 2006) – escapa completamente, por sua imprevisibilidade e complexidade, ao escopo de nossas capacidades científicas.
Como ele mesmo diz, numa entrevista publicada na revista Science & Technology News(1º/3/2006): “A ciência aborda coisas muito simples e faz perguntas muito complexas sobre elas. Tão logo as coisas se tornam muito complexas, a ciência não pode lidar com elas… Mas é um assunto complicado: a ciência estuda o que está no limite do entendimento e o que está no limite do entendimento é, geralmente, bastante simples. E ela raramente alcança as questões humanas. As questões humanas são muitíssimo complicadas”.
Como se vê, nada em Chomsky é pouco polêmico; tudo é muito provocativo. Não sabemos se suas hipóteses se sustentarão no futuro. Temos, porém, de admitir que ele formulou problemas que continuarão nos desafiando por muito tempo ainda.