sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A mil beijos de profundidade
Leonard Cohen recebeu no passado mês de Outubro em Oviedo, Espanha, o Premio Príncipe de Astúrias de Letras, uma condecoração que supõe o reconhecimento como poeta do artista canadense
Alberto Manzano – Cultura/s La Vanguardia, 19/10/2011

O poeta, compositor e cantor canadense Leonard Cohen recebeu no dia 21 de Outubro de 2011 o Premio Príncipe de Astúrias de Letras. Uma condecoração que foi amplamente questionada. Não entrarei na polémica – “quando há crítica, é a crítica a julgada”, dizia o próprio Cohen. São mais de trinta anos que levo trabalhando no âmbito da poesia no rock e já me sinto imune ao febril delírio académico mais retrógrado – às vezes a rigidez purista torna-se convulsiva.
Não por isso deixarei de reconhecer o fato inegável de que o rock, a música moderna, ou como queiram chamá-la, sofre uma desmedida saturação de versos de má qualidade; nem, ao contrário, que essa constatação seja motivo para admitir que uma grande parte da melhor produção poética de nossos dias se expresse através da música. Atualmente ninguém precisa publicar um livro de poemas para ser poeta, podendo fazê-lo perfeitamente através da música: “ Eu não escrevo poesia, simplesmente a canto. Não há tempo para lê-la, mas sim para escutá-la”, diria John Lennon.
E é verdade, fruto de um tempo desenfreado e alfinetado pelo ferrão da urgência sistemática – no qual se não quer entrar na corrida, melhor correr à frente dela – a languida poesia encontra uma maneira veloz de sobreviver e recupera sua vitalidade pegando carona na expressão artística que entra com maior força no leito de todos: a música popular. E dessa maneira, cavalgando a música, fundida num só corpo, a poesia populariza sua mensagem: “Eu nunca estabeleci qualquer diferença entre poesia e canção”, diria Leonard Cohen. “Era uma expressão que se impunha com beleza, ritmo, autoridade e verdade. Dá no mesmo que Fats Domino cante “Eu encontrei meu entusiasmo em Blueberry Hill” ou que Yeats diga: “Somente Deus poderia amar-te por ti mesma, e não por seus cabelos dourados”. Eu nunca diferenciei a expressão popular da literária. E mesmo estudando literatura inglesa na Universidade de Montreal, o que na verdade buscava era criar uma linguagem mais próxima a nós, aos nossos ritmos, que falasse de nossas vidas. Nesse sentido, trabalhei desde a perspectiva de que a música é a vida do coração, e o poema sua expressão mais nobre. Me impus o dever de cultivar o coração através da música”.
Porem Leonard Cohen já era um reconhecido poeta nos círculos literários dos Estados Unidos e Canadá quando chegou a Nova Iorque em 1966 para aventurar-se no mundo da música. Levava debaixo do braço dois romances e quatro livros de poesias que haviam sido publicados ao longo dos dez anos anteriores à sua chegada. Evidentemente isso lhe transformava numa rara avis. Um poeta que canta poemas? Um cantor que recita suas canções? Cohen tinha então 33 anos e transitava por um mundo de jovens idealistas de todo tipo: hippies, beatniks e amantes da contracultura. Ele havia sido um burgues universitário, diplomado em literatura anglo-saxónica, ilustrado nas Sagradas Escrituras e no esoterismo, revolucionário frustrado, profeta apocalíptico y drogado incorrigível, e mesmo que na desconjuntada órbita da Factory de Warhol suas credenciais literárias causaram cautela e ressentimento – sua amiga Janis Joplin chegou a recrimina-lo numa ocasião: “Que foi, Leonard, veio ler seus poemas para as velhas?” – sua excepcional originalidade artística fez com que muitos de seus célebres colegas – Bob Dylan, Lou Reed, Jackson Browne – reconhecessem que estavam ante um grande poeta do rock.
Claro que Leonard não foi o primeiro artista em levar a poesia ao rock – em meio dos anos sessenta em Nova Iorque as pessoas chegavam com guitarras, saxofones, pandeiros, vinho, panfletos e amor livre, poesia, circo e zen, haviam pintores, estagiários e vagabundos, santos, druidas e anjos, especialista em uma coisa ou outra, e todo se misturava – porem, sem dúvida, ninguém havia antes subido tanto o nível. Até o próprio Allen Ginsberg lhe elogiava. As músicas de Leonard Cohen conjugam num mesmo corpo artístico o império da palavra universal desprovida de idioma, o mistério da verdade derramada por um rio infinitamente largo e sem direção: o lirismo dos poetas românticos anglo-saxões – Keats, Yeats – os textos sagrados do antigo e do novo testamento – Isaías, Jesus – os cantos à desobediência dos poetas beat, o surrealismo de Lorca – que lhe abriu a mente quando tinha quinze anos – e o sufismo de Rumi – que lhe havia acendido o fogo incombustível da experiencia mística no coração. Um diluvio destilado numa canção.
Para muitos de seus fãs mais fiéis, Leonard Cohen é o poeta sagrado de nossa geração – ou como o qualificava tao correctamente Santiago Auserón: “cantor do fogo sagrado”. Porque, na investigação diária dos mistérios do espírito, ninguém como esse incomparável mestre da linguagem interior vislumbrou o coração com o braço de seu violão, ninguém lançou cargas de luz sobre os abismos da alma com tanta habilidade, ninguém tao competente mergulhou em lugares profundos aonde a maioria de nós não se atreveria pisar – a mil beijos de profundidade – articulando um discurso inteligível na descrição do que havia encontrado lá. Sua obra salvou tantas vidas como foi testemunha de numerosos suicídios, seus livros descansaram nos criados-mudos de milhões de amantes e solitários schopenhauerianos, de monges com ereções sob o hábito e terroristas de pólvora molhada, e sua música, suas embriagadoras toadas, voltam a revoar uma e outra vez em nossas mentes como um mantra.
Sou consciente de que muitos dos que conhecem Leonard Cohen como cantor desconhecem sua obra literária – no melhor dos casos, talvez tenham ouvido o suave eco de  algum sino distante chamado leitura – e não quero que isso seja um chamado a nenhum tipo de exército de salvação poética. Leonard Cohen não gostaria. Ele segue concentrado em seu trabalho – ainda que seus longos parêntesis criativos nos demonstraram com frequência que, para ele, o ofício de ser humano é muito mais importante que o de ser um cantor ou poeta. No início dos anos noventa, abandonou o mundo para retirar-se num Monastério budista. Uma disciplina que leva praticando desde o final dos anos sessenta sob os ensinamentos de seu velho mestre japonês Roshi. Mas nunca desprezou seu trabalho artístico. Sua vida está casada com a arte. E soube compatibilizar sua obra musical e poética sem estabelecer diferencia alguma entre ambas. É autor de um conjunto de poemas que provavelmente seja a obra pós-moderna mais inventiva da poesia norte-americana dos anos setenta: “A morte de um mulherengo”; criador da desconstrução estética num ágil livro libertário aonde o malandro aparece como uma espécie de anjo da vingança miltoniano: “A energia dos escravos”; um talmudista que justapõe zen e judaísmo no livro mais confessional e sálmico de nossa cultura ocidental: “Livro da misericórdia”; e pintor da tela poética que revela a completa dissolução do eu particular aonde a doçura interior do homem não se pode esconder: “Livro da saudade”.
Leonard Cohen, profeta do coração, líder do nosso governo no exílio, velho fanfarrão que foi pra cama com todas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário