sexta-feira, 14 de maio de 2010

Crítica VS. Análise: Os limites da interpretação

Francisco Javier Gómez Tarín
Professor de Narrativa audiovisual e de Análise de textos audiovisuais na Universidade Jaume I de Castellón

Frente ao ocaso da sociedade na qual vivemos, que leva anos tentando acomodar-nos com o mínimo denominador (questão essa que, ao que parece, não provoca grandes protestos), faz-se necessário aprofundar o debate levado aqui nos últimos meses. Em conseqüência, a reflexão que segue não está relacionada com a qualidade dos textos anteriores – díspares, mas sempre enriquecedores – porém com a ausência de uma contextualização imprescindível: a que nos referimos quando falamos de crítica (cinematográfica, nesse caso)? Porque, se utilizamos um ponto de referência díspar, dificilmente poderemos avançar nos aspectos mais polêmicos aos que nos devemos enfrentar.

Assumimos que a crítica cinematográfica é algo que identificamos sem maiores problemas quando nos encontramos com um texto publicado numa revista (diária, semanal ou mensal) que nos fala de um filme desde uma perspectiva que tenta abordar seu sentido e/ou vicissitudes ao seu redor que possam dar lugar a outro tipo de reflexões, talvez mais profundas. No entanto, se isso fosse tão simples, não estaria provocando uma confusão semântica entre crítica e notas, comentários, análise... O jornalista aspiraria ser classificado como crítico, enquanto este aspiraria ser classificado como analista...

Entre as décadas de cinqüenta e oitenta do século passado, a crítica contribuiu de forma relevante à construção da teoria fílmica, talvez com maior penetração nas instituições docentes, que chegaram historicamente tarde aos estudos sobre o cinema. Tal crítica não se limitou a comentar um filme e abordou, com maior ou menor eficácia e qualidade, o conjunto do ato fílmico. Em essência, exerceu um trabalho crítico e cumpriu as três funções já expostas nessas mesmas páginas a partir do reconhecido texto de George Steiner.

Hoje em dia custa muito trabalho identificar esse tipo de crítica no caótico mercado das publicações periódicas, pois aqueles eram textos que tentavam abordar em profundidade as matérias com as quais se enfrentavam (pensemos na análise de O jovem Lincoln no número 223 de Cahiers Du Cinema, em janeiro de 1970). Não foi por acaso que grifei em cursiva o conceito de trabalho crítico no parágrafo anterior, já que era exatamente isso: uma reflexão a partir de um texto audiovisual, o encontro de elementos que constituam nele um significado e inclusive a elaboração ou consolidação de teorias.

O que atualmente está em uso – e abuso – é uma sistemática elaboração de argumentos mais ou menos brilhantes a partir de um ponto de vista preestabelecido ao que toda obra audiovisual é impelida e redesenhada para fazê-la dizer aquilo que não diz de maneira alguma (ou, no melhor dos casos, ligeiramente o comenta). Com isso perdem-se todas as funções que tal crítica poderia cumprir, e, conseqüentemente, sua capacidade pedagógica. Se assumirmos que é com esse tipo de crítica que nos encontramos cada vez mais, devemos girar a favor da análise e separá-la daquilo que a “crítica” está fazendo (nem deveria dizer que uma boa crítica é o resultado de uma boa análise).

Assim, a crítica ao uso é a conseqüência de uma visão fugaz de um filme e responde ao impacto emocional que toda obra produz. Isso, como é lógico, não tem nada a ver com o que entendemos por análise, que obedece a processos muitos mais objetivos. A intervenção da subjetividade, a partir de um horizonte de expectativas que o espectador constrói em seu deleite (e o crítico é também um espectador em todos os efeitos) ocupa o primeiro plano e é, portanto, critério qualitativo, fazendo com que a escrita se deixe levar pelos efeitos do “parecer” em lugar do “ser”. Sabendo que não existe objetividade, e minhas intenções estão longe de pretender tal incongruência, não é menos certo, como dizia Santos Zunzunegui alguns meses atrás, que “toda obra de arte leva inscrita em sua materialidade um significado que não é em absoluto inocente”. Revelar esse significado, a partir dos significantes, é o trabalho do crítico que pretende analisar, ou do analista que elabora reflexões críticas.

Se nos colocamos do lado da visão imediata e da falta de profundidade, o que menos se pode exigir do auto-qualificado crítico é que nos revele de onde manifesta e constrói seus argumentos, visto que os interesses e preconceitos são as guias que arrastam suas palavras e, de alguma maneira, diz o que já estava elaborado em sua mente: o filme converte-se assim numa autorização que se utiliza a gosto próprio.

Resumidamente: o que diz um filme, em qualquer nível, está inscrito no mesmo e nossa missão é decifrá-lo, sem deixar-nos levar por um ponto de vista preestabelecido - ainda que o nível de subjetividade (desejável, sempre) revela-se no cruzamento do que interpretamos e da nossa própria bagagem cultural, na medida em que cada um aporta sua própria visão do mundo ao exercício hermenêutico. Como indica Jacques Aumont, o analista “nunca se deve realizar uma análise aplicando cegamente uma teoria previamente estabelecida, nem criar sentidos não extraídos diretamente do texto, nem privilegiar o sujeito e vislumbrar o autor como origem exclusiva do significado; para evitar o excesso é necessário o controle baseado no estabelecimento – como limite – de uma congruência”.

Vale como paradigma um fragmento evidente em si mesmo como resumo do significado do filme: refiro-me ao plano seqüencia de Gangs of New York (Martin Scorsese, 2002) no qual a câmera abandona os personagens para mover-se sobre a chegada de irlandeses que são alistados e incorporados a um barco do qual sacam cadáveres em ataúdes; uma canção, explícita, coloca letra ao que não podemos de forma alguma deixar de pensar como espectadores. Essa evidência em quanto à interpretação (daí a escolha, para não deixar duvidas a respeito), se sustenta radicalmente no significante: só um plano seqüencia permite construir um discurso que resume em si mesmo a intenção do filme de manifestar a construção de uma sociedade baseada na violência, no sangue e, em ultima instância, na morte. Mas esse plano seqüência – que faz a conexão entre os vivos e os mortos na grua sobre o barco, subindo e descendo – deve somar-se ao mecanismo enunciativo que marca diretamente a ruptura da narração onisciente pelo inicio da panorâmica abandonando explicitamente os personagens do filme. Esse mecanismo discursivo mostra ao espectador a importância dessa cena e indica, sem dúvida, que é o ente enunciativo quem toma diretamente o relato em suas mãos, rompendo assim a transparência e propiciando uma participação crítica.

Em essência, o significado está aí e o trabalho do crítico é interpretá-lo (análise do significante = trabalho investigativo), explicá-lo (descrição de como se produziu o sentido = trabalho pedagógico) e comentá-lo (argumentação e reflexão = trabalho teórico). Devo dizer, para concluir, que apenas uma visão de qualquer material audiovisual é insuficiente para entender os significados a extrair do significante com uns critérios mínimos de qualidade, por isso o texto foi titulado “crítica VS análise”.

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