quinta-feira, 15 de abril de 2010

Como superar o estranho caso da crítica/Jeckyll e da análise/Hyde...?
Àngel Quintana

Quando falamos de crítica literária dificilmente estabelecemos uma diferença entre a crítica jornalística e a crítica universitária. O crítico que publica artigos em jornais ou em revistas especializadas tem uma autoridade respaldada por seus hipotéticos estudos e leituras que o fazem conhecedor da matéria, suas reflexões estão apoiadas numa base teórica cuja origem é muitas vezes acadêmica e sua escrita costuma ser solvente. É comum que esse mesmo crítico dê aulas de literatura numa universidade, que publique um ensaio de análise sobre as obras de determinado autor e que una sua paixão pela atualidade com o desejo permanente de releituras dos clássicos. Em 1970, por exemplo, Roland Barthes publicou S/Z, um dos textos modelo sobre a análise de uma obra literária: Sarrazine, de Balzac. No mesmo ano publicou outros textos sobre literatura, semiótica e cultura de massas em revistas acadêmicas como Tel Quel ou em órgãos de divulgação literária como La Gazette Littéraire. Na medida em que avançava em sua reflexão sobre a literatura, Barthes não deixou de mesclar sua vocação científica com sua vocação poética, chegando a autênticos paradoxos como o implícito em La chambre claire, um texto teórico sobre a fotografia que é também uma reflexão sobre a morte de sua mãe. A pluridisciplinariedade e o desejo de expandir a crítica a diferentes direções e registros converteram Roland Barthes no paradigma do crítico moderno.
No âmbito da crítica cinematográfica as coisas são mais complicadas do que na literatura. A tradição moderna da crítica no cinema não surgiu da academia, mas sim da cinefilia, um modelo cultural autodidata. Alguns anos atrás, durante uma palestra, o sociólogo Edgar Morin lembrava que, quando escreveu Le cinéma ou l'homme imaginaire (1956), sua obra era uma autêntica rara avis no âmbito cultural. Morin era sociólogo, estava na universidade e sua pesquisa sobre o espectador chocava contra os modelos acadêmicos. O cinema era um espaço autodidata, o qual sentia uma estranha admiração pelo “bando dos quatro” da Cahiers du cinéma (Truffaut, Rohmer, Rivette, Chabrol e Godard), já que sua cultura não era sistemática e esse fator lhes proporcionava uma enorme liberdade. O ato de devorar os clássicos na Cinemathéque lhes permitia conhecer o cinema, enquanto sua formação intelectual oferecia interessantes desvios à literatura ou à arte.
Essa liberdade autodidata foi fundamental para a consolidação da escrita cinematográfica como prática crítica moderna, porem também é verdade que em muitos aspectos o excesso de cinefilia foi a origem de muitos males. A cinefilia provocou que maus críticos erijam-se como escritores viscerais seguros de seu gosto próprio. Dificilmente poderá sair algum pensamento do trabalho desses autores aos que Oscar Wilde já batizou como membros de um absurdo tribunal do gosto. Como na crítica literária ou artística, na crítica cinematográfica também existem maus críticos. A única diferença é que alguns desses maus críticos ocupam espaço nos grandes meios de comunicação. Ainda assim, o descrédito de determinada crítica jornalística não tem nada a ver com o debate que nos ocupa, centrado em demonstrar como a prática crítica pode ser um exercício intelectual tão válido como a prática analítica acadêmica ou como a pesquisa historiográfica baseada em metodologias rígidas. O suposto estranho caso da crítica/Jeckyll e da análise/Hyde pode ser superado.
Um dos sinais da modernidade na crítica cinematográfica é a negação de uma visão sistemática do meio. A reflexão teórica mais importante sobre o cinema não é um corpus sistemático. André Bazin não escreveu O que é o cinema? partindo de uma prática metodológica forte, apesar de sua formação estar marcada pelo peso da fenomenologia e de que sua própria visão cultural do mundo e da arte eram amplias. O mais importante da escritura de Bazin se escora em sua fragmentação. Diferentemente de outras disciplinas, o cinema não precisou de um grande tratado que reúna todo o seu saber. Sua teoria foi desenvolvida a partir de peças fragmentadas. Uma série de textos curtos elaborados como críticas dos filmes que estavam em cartaz foram a base das grandes reflexões sobre a ontologia do cinema, sobre sua relação com outras artes e sobre a reprodução do real. O livro de André Bazin é uma recopilação de textos, muitos dos quais escritos entre 1954 e 1956 – mesma época em que Roland Barthes escreveu também suas Mitologias , outra coleção fragmentada de textos de natureza jornalística que estabeleceram as bases para o estudo dos sinais de linguagem na sociedade de massas. As conexões entre ambas as obras não são casuais, já que as duas anunciaram que o moderno discurso jornalístico pode esconder as bases de um forte discurso teórico.
Nos meios acadêmicos foi estabelecida uma clara diferenciação entre os pesquisadores e os divulgadores. Ao longo do curso escolar de 2008-2009, a universidade francesa entrou em greve porque o governo Sarkozy quer estabelecer uma diferenciação entre pesquisadores e professores. O primeiro grupo estaria formado por membros de reconhecidos grupos de pesquisa que publiquem em revistas especializadas de alto interesse acadêmico e cujos trabalhos – independentemente de sua validez – sejam objeto de citação. Os segundos seriam os responsáveis de divulgar o saber em classe e nos meios de comunicação. A situação francesa não é mais que o espelho de uma situação bastante generalizada que, desde a universidade, explode com força no mundo da cultura. A hiperespecialização tem o perigo de converter o analista, o pesquisador ou o historiador numa pessoa fechada nos seus próprios círculos, afastada da realidade e despida de todo seu espírito crítico. Por outro lado a divulgação é vista como um exercício de segunda divisão, como um ato desacreditado. Alguns anos atrás, no sugestivo livro titulado Universidade sem condição, Jacques Derrida anunciava que entre a Universidade da excelência e a Universidade da divulgação não havia espaço para o espírito crítico. Derrida considerava que esse espírito crítico era realmente o sentido que a universidade deveria exercer ante o conformismo imperante nos tempos atuais. No âmbito dos estudos cinematográficos, que, apesar de estarem implantados na universidade, não são assimilados pelos tribunais de excelência, a divisão entre analistas/historiadores e críticos/pau pra toda obra, supõe na verdade a aceitação dessas perversas regras do jogo.
O mundo dos estudos sobre cinema não deve funcionar a partir de altares separados nos quais as poucas pessoas que trabalham no meio portem brilhantes etiquetas metodológicas como símbolo de um suposto rigor. No âmbito universitário, o cinema deve ser visto de maneira multiforme, desde uma clara vocação heterofundada e como um espaço de intercambio constante entre diferentes correntes de reflexão. A crítica jornalística também pode ser exercida desde a universidade e não deve ser vista como a prima pobre da análise e da historiografia. O pensamento sobre o presente do cinema só pode ser edificado sobre o pensamento do passado, e a intervenção pausada – baseada na reflexão e na análise fílmica – deve ser complementada com a reflexão impressionista baseada na intuição. O conhecimento deve ser marcadamente crítico e a crítica deve ser um autêntico exercício de consciência sobre o futuro do meio. A crítica mais proveitosa e fértil não surge de mundos fechados que buscam a esterilidade da excelência, mas sim do ativismo que comporta a divulgação do conhecimento. Felizmente, o significado da palavra crítica é polissêmico.

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