segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Um pouco de cinema...

O estranho caso da análise – Jekyll – e da crítica – Hyde.
Imanol Zumalde Arregi
Professor da Universidade do País Vasco, analista fílmico e autor de diversos estudos sobre o fenômeno cinematográfico.

Em tempos confusos, e essa pós-modernidade aonde nos resulta viver já indica proporções babélicas, acontecem coisas estranhas. Sem ir muito longe, hoje em dia chama-se de crítico de cinema qualquer um que apresente seu juízo na mídia sobre filmes recentemente exibidos em salas e festivais ou que emite um parecer sobre os filmes repescados pela televisão; porém, também são considerados críticos aqueles que tomam o tempo necessário para dissecar tranquilamente as variações temáticas e formais dos textos fílmicos. Em fim, por costume, preguiça, desconhecimento ou má-fé o crítico cinematográfico e o analista fílmico (e em muitas vezes o historiador de cinema também) compartem o mesmo espaço distraindo aos cinéfilos.

Esse tipo de deslize etimológico deriva do fato de serem disciplinas limítrofes que compartem espaços comuns, chegando às vezes a intercâmbios frutíferos; como por influência das versáteis rotinas de trabalho de escritores de cinema que passam a exercer de críticos e que pouco depois se convertem em analistas (e historiadores), sem continuidade e com as mesmas desenvoltura e ferramentas de trabalho. A partir disso não está demais que façamos o esforço de pôr certa ordem nesse espaço limítrofe compartido pela crítica e pela análise de cinema, mesmo sabendo que sobre esse tema não se pode traçar uma cartografia precisa.

A crítica cinematográfica é uma atividade palpitante, atual, que se digere quente, ao lado do marketing da mesma e de bate-pronto (em textos de média ou curta extensão, às vezes telegráficos) sem grandes bases teóricas e metodológicas. Isso porque a crítica tem uma função muito precisa que, além de trazer informações gerais sobre os filmes, consiste em mostrar e avaliar o que o espectador deveria assistir. Antes de qualquer outra eventualidade, a crítica leva a cabo um trabalho braçal selecionando o que considera interessante ou valioso, separando o joio do trigo, separando o que serve para “encher lingüiça” com a intenção de que o espectador economize tempo e dinheiro em seu consumo cinematográfico.

A crítica, por fim, expõe um juízo de valor mais ou menos racional sobre a qualidade estética, mas também ética, de determinado filme com a finalidade de facilitar ao espectador um guia que lhe permita navegar com critério seletivo e alguma garantia de prazer entre o marasmo de uma oferta audiovisual materialmente inabarcável. A crítica é uma atividade pessoal e intransferível, sujeita exclusivamente ao critério e às fantasias do gosto de quem a assina. O crítico, ao fim, se atira sobre a opinião pública outorgando-se o papel de fiscal do bom gosto. Mas quem lhe alçou a esse pedestal? Que autoridade tem esse fiscal? Em que tipo de leis ele se apóia? Qual o seu critério?

É evidente que os profissionais do juízo do gosto - como assim os define Laurent Jullier em O que é um bom filme? - controlam métodos de avaliação artística pouco rígidos. O próprio Jullier os classifica em seis, cada um mais volúvel e passageiro que o outro: êxito comercial, valor técnico, caráter edificante, poder emocional, originalidade e coerência. Poderia ser invocado o Canon, porém se existe algo que caracteriza a critica de cinema é exatamente sua apologia ao contracanon e à heterodoxia. Assim sendo, aonde recai o peso das provas desse fulminante juízo proposto pela crítica?

Mesmo que reconhecê-lo provoque certa vertigem, temo que a razão crítica descansa sobre a credibilidade do mesmo, sobre a confiança que seus veredictos precedentes conquistaram entre os interlocutores que o consideram uma pessoa de bom gosto e capaz de escolher aquilo que lhes pode gostar. O que nos revela que, no final, a crítica é um ato de fé.

Nesse extremo se estrangulam a crítica e o fator discordante que a separa da análise fílmica, dois discursos paralelos sobre o mesmo tema (o filme), mas com diferentes protocolos de atuação. Para começar, o analista fílmico não emite um juízo sobre o valor estético de um filme, mas o esmiúça, o divide, e o analisa na tentativa de explicar como diz o que diz. Conseqüentemente, na análise não há espaço para o impressionismo, para a subjetividade ou para a opinião pessoal, pontos básicos do discurso crítico, ao que o analista contrapõe o rigor metodológico, a fidelidade empírica e a verificação experimental, próprios do conhecimento cientifico. No que corresponde ao seu horizonte possível, a análise fílmica (discurso do Ser que emprega uma determinada metodologia para colocar em evidência a imanência de um artefato estético) é a inversão perfeita da crítica (discurso do Parecer que se apóia no gosto pessoal para expor um juízo). De onde se deduz que a legitimidade epistemológica da análise fílmica reside na sua metodologia, seus instrumentos e técnicas de exploração; num lugar externo ao artefato fílmico, ainda que sua missão se apóie em trazer à luz a lógica que existe sob seus particulares mecanismos de significação.

Isso não que dizer que a análise fílmica seja uma atividade rotineira, mecânica e infalível que se desenvolve impávida à margem das capacidades de um analista submetido à ditadura do método, como Chaplin na linha de montagem de Tempos Modernos. A análise fílmica também é, à sua maneira, um discurso em primeira pessoa, uma voz aonde vibra o tom de uma sensibilidade particular e intransferível, o resultado de uma perícia e de uma habilidade únicas.

Uma análise estuda um objeto (um filme ou vários) servindo-se de determinados instrumentos, e do analista depende a escolha de uns ou outros. Quando foca seu olhar num filme o analista não escolhe só um objeto concreto, mas o(s) problema(s) que nele transparecem. Um filme (como qualquer outro discurso) é um poço semântico sem fundo; o objeto da análise fílmica, ao contrario, é um risco intelectual singular que cobra virtualidade numa configuração precisa de sons e imagens quando explorada pela lente conceitual de uma metodologia.

A análise supõe uma intervenção reflexiva e pausada, avessa ao imediatismo e às urgências inerentes à crítica. É uma reflexão destilada que propõe uma hipótese sobre o funcionamento dos mecanismos internos de um filme. Essa hipótese deve ter coerência interna, fidelidade empírica e relevância cognitiva. Porém, gostaria de reivindicar a idéia de que quanto mais elegante seja essa hipótese (fato que tem a ver com a economia de seu raciocínio, sua profundidade e sua amplitude, assim como com sua originalidade) melhor será o exercício analítico.

A análise é também um argumento para ser desfrutado, um espaço de troca de conhecimentos direcionado ao gozo. Diante do discurso chamânico do crítico que promete prazer (ou sofrimento) na dose cinematográfica de todos os dias, o analista destrincha os artefatos fílmicos para iluminar os mecanismos audiovisuais que nos fazem pensar e sentir. Nesse sentido a análise fílmica não é somente o caminho mais curto a um novo saber, mas um dispositivo que funciona para potencializar o prazer.

“Agora que sabemos quem é você, sabemos também quem sou eu” diz Elijah Price (Samuel L. Jackson) a David Dunn (Bruce Willis) no final de Unbreakable (Night M. Shyamalan, 2000). Frente e verso de uma mesma moeda, a crítica de cinema e a análise fílmica só podem reconhecer a si mesmas com a condição de admitir a identidade do outro.

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